terça-feira, 12 de janeiro de 2010

...Carta aberta...

Passei algum tempo afastado....não só no ponto de vista prático como também teórico em relação há alguns pocionamentos...que tenho em relação a realidade em que vivemos e consequentemente a forma como a mesma foi construída. Sem mais prolongamentos anúncio meu retorno...e nada melhor que diante um texto de Antonin Artaud



Antonin Artaud


Carta Aberta 


Abandonai as cavernas do ser. Vinde o espírito se revigora fora do espírito. Já é hora de deixar vossas moradas.
Cedei ao Omni-Pensamento. O Maravilhoso está na raiz do espírito. Nós estamos dentro do espírito, no interior da cabeça. Idéias, lógica, ordem, Verdade (com V maiúscula), Razão: tudo isso oferecemos ao nada da morte. Cuidado com vossas lógicas, senhores, cuidado com vossas lógicas; não imaginais, até onde pode nos levar nosso ódio à lógica.
A vida, em sua fisionomia chamada real, só se pode determinar mediante um afastamento da vida, mediante uma suspensão imposta ao espírito; porém a realidade não está aí. Não venham pois, enfastiar em espírito a nós que apontamos para certa realidade supra-real, a nós que há muito tempo não nos consideramos do presente e somos para nós como nossas sombras reais.
Aquele que nos julga ainda não nasceu para o espírito, para este espírito a que nos referimos e que está, para nós, fora do que vós chamais espírito. Não chamem demasiado nossa atenção para as cadeias que nos unem à imbecilidade petrificante do espírito. Nós apanhamos uma nova besta.
Os céus respondem a nossa atitude de absurdo insensato. O hábito que tendes todos vós de dar às costas às perguntas não impedirá que os céus se abram no dia estabelecido, e que uma nova linguagem se instale no meio de vossas imbecis transações. Queremos dizer: das transações imbecis de vossos pensamentos.
Existem signos no Pensamento. Nossa atitude de absurdo e de morte é da maior receptividade. Através das fendas de uma realidade em frente não viável, fala um mundo voluntariamente sibilino.

Mensagem ao Papa
Não és tu o confessionário, oh Papa! Somos nós; compreende-nos, e que os católicos nos compreendam.
Em nome da Pátria, em nome da Família, incentivas a venda das almas e a livre trituração dos corpos.
Entre nossa alma e nós mesmos, temos que percorrer muitos caminhos, que venham a interpor se teus vacilantes sacerdotes e esse acumulo de aventuradas doutrinas com que se nutrem todos os castrados do liberalismo mundial. A teu deus católico e cristão que como os outros deuses concebeu todo o mal )
1. Tu o meteste no bolso.

2. Nada temos que fazer com teus cânones, índex, pecados, confessionários, clerigalham.

Pensamos em outra guerra, uma guerra contra ti, Papa, cachorro.
Aqui o espírito se confessa ao espírito. Da cabeça aos pés de tua farsa romana, o ódio triunfa sobre as verdades imediatas da alma, sobre essas chamas que consomem o próprio espírito. Não ha Deus, Bíblia ou Evangelho, ano ha palavras que detenham ao espírito. Não estamos no mundo. Oh Papa confinado no mundo! Nem a terra, nem Deus falam de ti.
O mundo e o abismo da alma! Papa aleijado, Papa alheio a alma. Deixa nos nadar em nossos corpos, deixa nossas almas em nossas almas. Não necessitamos de tua espada de claridades.

Carta aos Diretores de Asilos de Loucos

Senhores:
As leis, os costumes, concedem-lhes o direito de medir o espírito. Esta jurisdição soberana e terrível, vocês a exercem segundo seus próprios padrões de entendimento.
Não nos façam rir. A credulidade dos povos civilizados, dos especialistas, dos governantes, reveste a psiquiatria de inexplicáveis luzes sobrenaturais. A profissão que vocês exercem esta julgada de antemão. Não pensamos em discutir aqui o valor dessa ciência, nem a duvidosa existência das doenças mentais. Porém para cada cem pretendidas patogenias, onde se desencadeia a confusão da matéria e do espírito, para cada cem classificações, onde as mais vagas são também as únicas utilizáveis, quantas tentativas nobres se contam para conseguir melhor compreensão do mundo irreal onde vivem aqueles que vocês encarceraram?
Quantos de vocês, por exemplo, consideram que o sonho do demente precoce ou as imagens que o perseguem são algo mais que uma salada de palavras? Não nos surpreende ver até que ponto vocês estão empenhados em uma tarefa para a qual só existe muito poucos predestinados. Porém não nos rebelamos contra o direito concedido a certos homens - capazes ou não - de dar por terminadas suas investigações no campo do espírito com um veredicto de encarceramento perpétuo.
E que encerramento! Sabe-se - nunca se saberá o suficiente - que os asilos, longe de ser "asilos", são cárceres horríveis onde os reclusos fornecem mão-de-obra gratuita e cômoda, e onde a brutalidade è norma. E vocês toleram tudo isso. O hospício de alienados, sob o amparo da ciência e da justiça, è comparável aos quartéis, aos cárceres, as penitenciarias. Não nos referimos aqui as internações arbitrárias, para lhes evitar o incomodo de um fácil desmentido. Afirmamos que grande parte de seus internados - completamente loucos segundo a definição oficial - estão também reclusos arbitrariamente. E não podemos admitir que se impeça o livre desenvolvimento de um delírio, tão legitimo e lógico como qualquer outra serie de idéias e atos humanos. A repressão das reações anti-sociais, em principio, è tão quimérica como inaceitável. Todos os atos individuais são anti-sociais. Os loucos são as vitimas individuais por excelência da ditadura social. E em nome dessa individualidade, que è patrimônio do homem, reclamamos a liberdade desses forcados das galés da sensibilidade, já que não se está dentro das faculdades da lei condenar à prisão a todos que pensam e trabalham. Sem insistir no caráter verdadeiramente genial das manifestações de certos loucos, na medida de nossa capacidade para avalia-la, afirmamos a legitimidade absoluta de sua concepção da realidade e de todos os atos que dela derivam.
Esperamos que amanha de manha, na hora da visita medica, recordem isto, quando tratarem de conversar sem dicionário com esses homens sobre os quais - reconheçam - só tem a superioridade da forca.

Carta aos Reitores das Universidades Européias

Senhor Reitor
Na estreita cisterna que chamais "Pensamento" os raios do espírito apodrecem como montes de palhas.
Basta de jogos de palavras, de artifícios de sintaxe, de malabarismos formais; precisamos encontrar - agora - a grande Lei do coração, a Lei que não seja uma Lei, uma prisão, senão um guia para o espírito perdido em seu próprio labirinto. Alem daquilo que a ciência jamais poderá alcançar, ali onde os raios da razão se quebram contra as nuvens, esse labirinto existe, núcleo para o qual convergem todas as forcas do ser, as ultimas nervuras do Espírito. Nesse dédalo de muralhas movediças e sempre transladadas, fora de todas as forcas conhecidas de pensamento, nosso Espírito se agita, espreitando seus mais secretos e espontâneos movimentos, esses que tem um caráter de revelação, esse ar de vindo de outras partes, de caído do céu.
Porem a raça dos profetas esta extinta. A Europa se cristaliza, se mumifica lentamente dentro das ataduras de suas fronteiras, de suas fabricas, de seus tribunais, de suas Universidades. O Espírito "gelado" range entre as laminas minerais que o oprimem. E a culpa è de vossos sistemas embolorados, de vossa lógica de dois- e - dois - são - quatro; a culpa è vossa, Reitores, apanhados na rede de silogismos. Fabricais engenheiros, magistrados, médicos a quem escapam os verdadeiros mistérios do corpo, as leis cósmicas do ser, falsos sábios, cegos para o alem, filósofos que pretendem reconstruir o Espírito. O menor ato de criação espontânea constitui um mundo mais complexo e mais revelador que qualquer sistema metafísico.
Deixa-nos, pois, Senhores sois tão somente usurpadores. Com que direito pretendeis canalizar a inteligência e dar diplomas de Espírito?
Nada sabeis do Espírito, ignorai suas mais ocultas e essências ramificações, essas pegadas fosseis, tão próximas de nossas próprias origens, esses rastros que às vezes logramos localizar nos jazigos mais escuros de nosso cérebro.
Em nome de vossa própria lógica, vos dizemos: a vida empesta, senhores. Contemplai por um instante vossos rostos, e considerai vossos produtos. Através das peneiras de vossos diplomas, passa uma juventude cansada, perdida. Sois a praga de um mundo, Senhores, e boa sorte para esse mundo, mas que pelo menos não se acredite à testa da humanidade.

Mensagem ao Dalai Lama

Somos teus mui fieis servidores, oh Grande Lama! Concede-nos, envia nos tua luz numa linguagem que nossos contaminados espíritos europeus possam compreender, e se necessário modifica nosso Espírito, cria nos um espírito voltado inteiramente para esses cumes perfeitos onde o Espírito do Homem já não sofre.
Cria nos um Espírito sem hábitos, um espírito firmado verdadeiramente no Espírito, ou um Espírito com hábitos mais puros - ou teus - se eles são aptos para a liberdade.

Estamos rodeados de papas decrépitos, de profissionais da literatura, de críticos, de cachorros: nosso Espírito está entre cachorros, que pensam imediatamente ao nível da terra, que irremediavelmente pensam no presente.
Ensina-nos, Lama, a levitação material dos corpos, a como evitarem de serem retidos na terra.
Porque tu bens sabes que a libertação transparente das almas, a que liberdade do Espírito no Espírito aludimos. Oh Papa aceitável! Oh papa do Espírito verdadeiro!
Com o olho interior te contemplo, Oh Papa, no ponto mais alto do interior!
È nesse interior onde me assemelho a ti, eu, germinação, idéia, linguagem, levitação, sonho, grito, renuncia a idéia, suspenso entre as formas e a espera só do vento.

Carta as Escolas de Buda

Vós que não estais na carne, que sabeis em que ponto de sua trajetória carnal, de seu vai e vem insensato, a alma encontra o verbo absoluto, a palavra nova, a terra interior. Vós que sabeis como alguém dá voltas no pensamento e como o espírito pode salvar-se de si mesmo. Vós que sois interiores de vós mesmos, que já não tendes um espírito ao nível da carne: aqui há mãos que não se limitam a tomar, cérebros que vêem alem de um bosque de tetos, de um florescer de fachadas, de um povo de rodas, de uma atividade de fogo e de mármores. Ainda que avance esse povo do ferro, ainda que avancem as palavras escritas com a velocidade da luz, ainda que avancem os sexos um até o outro com a violência de um canhonaço, o que haverá mudado nas rotas da alma, o que nos espasmos do coração, na insatisfação do espírito?
Por isso, lança às águas todos esse brancos que chegam com suas cabeças pequenas e seus espíritos já manejados. È necessário agora que esses cachorros nos ouçam. Não falamos do velho mal humano. Nosso espírito sofre de outras necessidades que as inerentes à vida. Sofremos de uma podridão, a podridão da Razão. A lógica Europa esmaga sem cessar o espírito entre os martelos de dois fins opostos, abre o espírito e volta a fecha-lo. Porem agora, o estrangulamento chegou ao cumulo, já faz demasiado tempo que padecemos sob seu jugo.
O espírito é maior que o espírito, as metamorfoses da vida da vida são múltiplas. Como vós, rechaçamos o progresso: vinde, deitemos abaixo nossas moradas. Que continuem ainda nossos escribas escrevendo, nossos jornalistas cacarejando, nossos críticos resmungando, nossos agiotas roubando com seus moldes de rapina, nossos políticos arengando e nossos assassinos legais incubando seus crimes em paz. Nós sabemos - sabemos muito bem - o que è a nossa vida. Nossos escritores, nossos pensadores, nossos doutores, nossos charlatões coincidem nisto: em frustrar a vida.
Que todos estes escribas cuspam sobre nós, que nos cuspam por costume ou por mania, que nos cuspam porque são castrados de espírito, porque não podem perceber os matizes, os barros cristalinos, as terras giratórias onde o espírito elevado dos homens se transforma sem cessar. Nós captamos o pensamento melhor. Vinde. Salvai-nos destas larvas. Inventai para nós novas moradas.

NOTA
Em 1920, com idade de 24 anos, Antonin Artaud chega à Paris com a intenção de consagrar-se ao teatro. Liga-se então, com Charles Dullin, que acaba de fundar o "Théâtre de I’Atelier", participando como ator, decorador e realizador. Faz já tempo que Artaud se interessa pelas atividades do grupo surrealista. Em 1923, no atelier de André Masson, entra em contato com Robert Desnos, Michel Leiris e Miró, quem pouco tempo mais tarde lhe apresentam a André Breton e ao grupo surrealista, que acaba de organizar-se ao redor do Primeiro Manifesto. É a época do aparecimento da revista "A Revolução Surrealista", órgão do movimento. Artaud adere e se torna um dos principais porta-vozes da ideologia. "Apesar do pouco tempo transcorrido desde que Artaud havia se unido a nós, ninguém, como ele, soube entregar-se tão espontaneamente ao serviço da causa surrealista... Ele possuía uma espécie de furor que não perdoava, por assim dizer, nenhuma das instituições humanas, mas que podia, ocasionalmente, terminar em gargalhada. Por ele passava todo o desafio da juventude. Não surpreende que este furor, pelo enorme poder de contágio que possuía, influenciou profundamente a trajetória surrealista (André Breton, "Entretiens", Gallimard, 1952).

No começo do ano de 1925, o grupo funda uma "Central de Investigações Surrealista", cujo objetivo inicial é: "recolher todos os dados possíveis no que diz respeito às formas que pode assumir a atividade inconsciente do espírito". Artaud, ao assumir pouco depois a direção, se esforça por converter o objetivo inicial num, centro de "reordenamento" da vida.
"O surrealismo, mais que crenças, registra uma certa ordem de repulsões. É antes de tudo um estado de espírito. Não determina receitas". O grupo lhe confia então à direção do n 3 da revista "A Revolução Surrealista", que até este momento estava a cargo de Péret e Naville.
Artaud toma a iniciativa de redigir a maior parte dos textos que se publicam neste número, dando um giro inesperado ao tom da publicação. "Aqui a linguagem se desprende de tudo o que podia dar-lhe um caráter ornamental, se entrega à "onda de sonhos" de que falou Aragón, e surge cheia e resplandecente à maneira de uma arma... (Breton, op.cit.)".
Seus textos impregnados de um ardor insurreacional, estão redigidos em forma de cartas abertas e dirigidos contra aquelas instituições ou seus representantes frente aos quais o surrealismo começa a organizar o seu clamor de protesto. Para a presente edição agrupamos as cartas sob o título geral de "Cartas aos Poderes".
Desde o primeiro texto (Carta Aberta), que figura como editorial da revista, uma voz profética e exaltada por uma violência que inquietava à seus próprios companheiros, lança uma ataque frontal contra o "espírito" lógico e seus "poderes" de opressão, que de século em século tem instrumentado a liquidação do homem. Nas cartas seguintes fixa os termos de sua denúncia contra este "espírito" fabricado nas universidades, reivindicado nos hospícios e "transfigurado" em Roma. Fica o chamado à um oriente dialético, através das cartas ao Dalai-Lama e as Escolas de Buda, onde entrevemos - à luz do romantismo surrealista - um eco do "Viagem ao Oriente" nerveliano.
Porém não pode apressar-se em reconhecer aqui um oriente histórico, senão melhor um "oriente interior", negação para onde se transfere tudo o que o ocidente não é. Vinte anos mais tarde, a voz de Artaud, convertida em grito, depois de sua passagem pelo hospício de Rodez, descarregará com a violência do anátema, todas as suas baterias contra este oriente e seu "espírito", que como todo o "espírito" se aplicou em torturar à vida. Estas cartas junto com "L’Ombilic des Limbes" e "Le pése-nerfs", representam o começo de uma desgarradora experiência de um mergulho em sua interioridade que "está aberta pelo ventre, e por debaixo acumula uma intraduzível e sombria ciência, cheia de mares subterrâneos, de edifícios côncavos e de uma agitação congelada".

ARTAUD, Antonin. Cartas aos Poderes. Porto Alegre: Editorial Villa
Martha, 1979.

3 comentários:

  1. o homem necessita das suas instituições. na desordem da sua "alma" ele precise das ordens que vêem de fora...fazer o quê né?
    bom que você voltou!

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  2. Sair do caminho também é caminho, já dizia Clarice.
    Saudades de tu, menino!
    Chaie :)

    É tudo uma coisa´só, não é mesmo? :)

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  3. Olá, bom dia.
    Vim dar uma volta no seu cantinho e agradecer palavras tão carinhosas para com o meu trabalho. Muito obrigada mesmo . Faço com muito gosto. Seu outro trabalho também é maravilhoso.
    Não deixe de voltar mais vezes, FOI DESSE JEITO QUE EU OUVI DIZER... terá sempre uma história para contar.
    Beijo grandão.
    Saudações Florestais !
    Silvana Nunes.'.

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- Chegue diante do quadro sem intenção preconcebida de sarcasmo.

- Olhe para a pintura do mesmo modo como olharia para uma pedra talhada. Aprecie as facetas, a originalidade da formam, a luta com a luz, a disposição da linha e das cores [...]

- Escolher um detalhe que seja a chave do conjunto, fixá-lo por um bom tempo, e o modelo surgirá.

- Nessa última comparação, deixar-se levar até as regiões da mais requintada Alusão.

Max Jacob


Que os vasos se comuniquem!

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