quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Chico Buarque e a Literatura parte I


 Trecho de Estorvo, romance de Chico Buarque.

 "...Com um limão galego na mão, mais o álcool me ardendo nas bochechas, não posso não pensar no meu amigo. Lembro-me de dias inteiros tomando caipirinha, eu e ele nesta beira de piscina.
Lembro-me bem do nosso último fim de tarde no sítio, cinco anos atrás, ele sentado ali mesmo, já meio grogue, com a fala cremosa. Ele olhando o horizonte e passando os dedos nos cabelos, passando os cabelos lisos para trás da orelha, num gesto que, lembrando agora, parece copiado da minha irmã. No dia em que ele fez esse gesto eu não achei nada, e na certa não tinha nada que achar. Mas hoje, além do gesto, descubro um brilho em seus olhos que me incomoda. O brilho deve ser reflexo do horizonte que ele olhava, mas na minha lembrança não entra o horizonte, e os olhos brilham por brilhar.
Meu amigo bebia comigo na piscina, e àquela altura a sua conversa já não fluía. Acho que ele falava de literatura russa, mas não tenho certeza, pois as palavras saíam enroladas e se perderam. Mas sua imagem me volta cada vez mais nítida; lá está a correntinha de ouro no pescoço, meio embaraçada, a pinta cabeluda logo abaixo do cotovelo, as costelas saltadas no flanco feito um teclado, o calção branco com três listras verdes verticais. Só não consigo me lembrar dos pés do meu amigo. Vivíamos descalços, e não me ocorre ter olhado alguma vez aqueles pés. Nunca reparei se eram grandes ou bonitos. Não sei dizer se os pés do meu amigo eram enormes, como os do professor de ginástica assassinado. Torno a me lembrar do meu amigo olhando o horizonte, seus cabelos molhados, negros como nunca, e ele agora se penteia com mais vagar que antes. Provavelmente se sentindo lembrado, tira longo proveito da situação. Traga um cigarro, que na lembrança anterior nem existia, e fica se deixando olhar, como um ator de perfil. Que se vira para mim de repente, querendo me surpreender, com um brilho nos olhos que me incomoda de novo. E já vai anoitecer sem que eu tenha conseguido olhar seus pés. Mas mesmo aquilo que a gente não se lembra de ter visto um dia, talvez se possa ver depois por algum viés da lembrança. Talvez dar órbita de hoje aos olhos daquele dia. E é assim que vejo finalmente os pés do meu amigo, pelo rabo do olho da lembrança. Vejo mas não sei como são; são pés refratados dentro da água turva, impossíveis de julgar.
Imagino meu amigo recebendo rapazes no apartamento. Meu amigo no sofá da sala, tomando campari e dizendo poesia para os rapazes. Com os pés descalços no sofá, mas disfarçados entre as almofadas, meu amigo passando os cabelos para trás da orelha, e imagino algum rapaz se irritando com a coisa toda. Meu amigo abrindo o álbum dos poetas franceses, e o rapaz encolhendo-se no sofá. E enchendo-se de ódio, e sofrendo de um outro ódio por não entender que ódio cruzado é aquele que o domina, e que é feito de muita humilhação e que é desprezo ao mesmo tempo. Imagino a poesia sendo interminável e o rapaz enlouquecendo, indo buscar uma corda no varal, ou uma faca na cozinha, mas daí para frente já não dá para imaginar, porque o meu amigo nunca seria professor de ginástica. Lembro-me mais uma vez dele ao meu lado, olhando o horizonte, os braços apoiados na borda da piscina, e nem bíceps o meu amigo tinha. Lembro-me do instante em que ele ergueu o corpo seco com uma rodela de limão grudada no fundo e fez menção de se levantar para reforçar a caipirinha.
Ameaçou trazer os pés á tona, e eu os veria de muito perto, como vi anos depois os pés do morto. Agora me dá grande aflição a idéia de ter visto os pés do meu amigo, pés que eu olharia tranqüilamente no tempo da lembrança. Mas o gesto instintivo deve ser reflexo de uma intenção que está noutro tempo. E naquela tarde eu pus a mão no seu joelho sem saber por que o fazia, e disse "não". Arranquei-lhe o copo e fui preparar a caipirinha dupla.
O álcool que levava o meu amigo para o lado da poesia também podia atacar seus nervos, deixá-lo agressivo. Era noite e já estávamos jantando na varanda quando ele decidiu que eu era um bosta, sem mais nem menos. Disse assim mesmo: "você é um bosta." E disse que eu devia fazer igual ao escritor russo que renunciou a tudo, que andava vestido como um camponês, que cozinhava seu arroz, que abandonou suas terras e morreu numa estação de trem. Disse que eu também devia renunciar às terras, mesmo que para isso tivesse de enfrentar minha família, que era outra bosta. Também eram bosta toda a lei vigente e todos os governos; e o meu amigo começou a se inflamar na varanda, gritando frases, atirando pratos e cadeiras no pátio, num escarcéu que acabou juntando o povo do sítio para ver. Ele gritava "venham os camponeses", e os camponeses que vinham eram o jardineiro, o homem dos cavalos, o caseiro velho e sua mulher cozinheira, mais os filhos e filhas e genros e noras dessa gente, com as crianças de colo. Várias vezes o meu amigo gritou "a terra é dos camponeses!" e aquele pessoal achou diferente. Mais tarde ele sossegou. Jogamos nossas coisas no porta-malas do carro dele, um rabo-de-peixe caindo aos pedaços, e fomos embora do sítio deixando a cancela aberta..." 

BUARQUE, Chico. Estorvo, Ed. Companhia das Letras. São Paulo, 1991.
(O romance recebeu o Prêmio Jabuti de melhor romance em 1992)






4 comentários:

  1. é a sua cara...acho que o amigo em questão era você...confessa.

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  2. rsrsrs...é interessante como certos personagens nos acompanham por certo tempo mesmo depois de termos terminado certa leitura...sempre é agradável sua visita aqui no Rembramdt.

    abraço Mariah

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  3. Meu, este livro do Chico, é bem interessante, ainda mais para "aquele" que carregam consigo um fascínio pela contarvenção, um romantismo em forma de vida errante. Às vezes nos sentimos um estranho no seio dessa sociedade sufocante, e se não estiver com a cabeça boa e esclarecida, e acima de tudo, sem o cristianismo nas entranhas, é difícil manter-se tranquilo e indiferente.
    abs

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  4. Sempre tive vontade de ler esse do Chico. Não sei porque nunca comecei a leitura, rs. Que coisa.

    Dia desses estava com ele em mãos... peguei, passei de leve a mão nas folhas, e guardei novamente.

    Quem sabe um dia desses.

    Obrigado pelas visitas aos pequenas epifanias.
    alegra-me sua presença por lá.

    abraços caro,
    boa noite

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- Chegue diante do quadro sem intenção preconcebida de sarcasmo.

- Olhe para a pintura do mesmo modo como olharia para uma pedra talhada. Aprecie as facetas, a originalidade da formam, a luta com a luz, a disposição da linha e das cores [...]

- Escolher um detalhe que seja a chave do conjunto, fixá-lo por um bom tempo, e o modelo surgirá.

- Nessa última comparação, deixar-se levar até as regiões da mais requintada Alusão.

Max Jacob


Que os vasos se comuniquem!

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