domingo, 17 de janeiro de 2010

Nunca mais...

                                             O Corvo de Edgar Allan Poe (1835),
      Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste, Vagos, curiosos tomos de ciências ancestrais, E já quase adormecia, ouvi o que parecia O som de alguém que batia levemente a meus umbrais Uma visita, eu me disse, está batendo a meus umbrais.             É só isso e nada mais.   Ah, que bem disso me lembro! Era no frio dezembro, E o fogo, morrendo negro, urdia sombras desiguais. Como eu qu'ria a madrugada, toda a noite aos livros dada P'ra esquecer (em vão) a amada, hoje entre hostes celestiais — Essa cujo nome sabem as hostes celestiais,             Mas sem nome aqui jamais! Como, a tremer frio e frouxo, cada reposteiro roxo Me incutia, urdia estranhos terrores nunca antes tais! Mas, a mim mesmo infundindo força, eu ia repetindo, É uma visita pedindo entrada aqui em meus umbrais; Uma visita tardia pede entrada em meus umbrais.             É só isso e nada mais. E, mais forte num instante, já nem tardo ou hesitante, Senhor, eu disse, ou senhora, decerto me desculpais; Mas eu ia adormecendo, quando viestes batendo, Tão levemente batendo, batendo por meus umbrais, Que mal ouvi... E abri largos, franquendo-os, meus umbrais.             Noite, noite e nada mais. A treva enorme fitando, fiquei perdido receando, Dúbio e tais sonhos sonhando que os ninguém sonhou iguais. Mas a noite era infinita, a paz profunda e maldita, E a única palavra dita foi um nome cheio de ais — Eu o disse, o nome dela, e o eco disse aos meus ais.             Isto só e nada mais. Para dentro estão volvendo, toda a alma em mim ardendo, Não tardou que ouvisse novo som batendo mais e mais. «Por certo», disse eu, «aquela bulha é na minha janela. Vamos ver o que está nela, e o que são estes sinais.» Meu coração se distraía pesquisando estes sinais.             É o vento, e nada mais. Abri então a vidraça, e eis que, com muita negaça, Entrou grave e nobre um corvo dos bons tempos ancestrais. Não fez nenhum cumprimento, não parou nem um momento, Mas com ar solene e lento pousou sobre meus umbrais, Num alvo busto de Atena que há por sobre meus umbrais.             Foi, pousou, e nada mais. E esta ave estranha e escura fez sorrir minha amargura Com o solene decoro de seus ares rituais. Tens o aspecto tosquiado, disse eu, «mas de nobre e ousado, Ó velho corvo emigrado lá das trevas infernais! Dize-me qual o teu nome lá nas trevas infernais.             Disse-me o corvo, «Nunca mais. Pasmei de ouvir este raro pássaro falar tão claro, Inda que pouco sentido tivessem palavras tais. Mas deve ser concedido que ninguém terá havido Que uma ave tenha tido pousada nos seus umbrais, Ave ou bicho sobre o busto que há por sobre seus umbrais,             Com o nome - Nunca mais. Mas o corvo, sobre o busto, nada mais dissera, augusto, Que essa frase, qual se nela a alma lhe ficasse em ais. Nem mais voz nem movimento fez, e eu, em meu pensamento Perdido, murmurei lento, Amigo, sonhos — mortais Todos — todos lá se foram. Amanhã também te vais.             Disse o corvo, -Nunca mais. A alma súbito movida por frase tão bem cabida, Por certo, disse eu, são estas vozes usuais. Aprendeu-as de algum dono, que a desgraça e o abandono Seguiram até que o entono da alma se quebrou em ais, E o bordão de desesp'rança de seu canto cheio de ais             Era este «Nunca mais». Mas, fazendo inda a ave escura sorrir a minha amargura, Sentei-me defronte dela, do alvo busto e meus umbrais; E, enterrado na cadeira, pensei de muita maneira Que qu'ria esta ave agoureira dos maus tempos ancestrais, Esta ave negra e agoureira dos maus tempos ancestrais,             Com aquele «Nunca mais». Comigo isto discorrendo, mas nem sílaba dizendo À ave que na minha alma cravava os olhos fatais, Isto e mais ia cismando, a cabeça reclinando No veludo onde a luz punha vagas sombras desiguais, Naquele veludo onde ela, entre as sombras desiguais,             Reclinar-se-á nunca mais! Fez-me então o ar mais denso, como cheio dum incenso Que anjos dessem, cujos leves passos soam musicais. Maldito!, a mim disse, «deu-te Deus, por anjos concedeu-te O esquecimento; valeu-te. Toma-o, esquece, com teus ais, O nome da que não esqueces, e que faz esses teus ais!»             Disse o corvo, «Nunca mais». Profeta, disse eu, profeta — ou demónio ou ave preta! Pelo Deus ante quem ambos somos fracos e mortais, Dize a esta alma entristecida se no Éden de outra vida Verá essa hoje perdida entre hostes celestiais, Essa cujo nome sabem as hostes celestiais!             Disse o corvo, -Nunca mais. «Que esse grito nos aparte, ave ou diabo!, eu disse. «Parte! Torna à noite e à tempestade! Torna às trevas infernais! Não deixes pena que ateste a mentira que disseste! Minha solidão me reste! Tira-te de meus umbrais!»             Disse o corvo, «Nunca mais». E o corvo, na noite infinda, está ainda, está ainda No alvo busto de Atena que há por sobre os meus umbrais. Seu olhar tem a medonha dor de um demónio que sonha, E a luz lança-lhe a tristonha sombra no chão mais e mais, E a minh'alma dessa sombra, que no chão há mais e mais,             Libertar-se-á... nunca mais!
      Tradução de Fernando Pessoa
      Edgar Allan Poe é sem dúvida nenhuma um dos maiores escritores da história, não só plea sua obra mas também pela sua vida...Pertecente ao século XIX assim como Baudelaire, Rimbaud e Dostoiévski, o autor de O corvo morreu por volta dos 40 anos devido ap excesso de alcool...foi encontrado morto, caído em uma calçada depois de uma bebedeira em um bar logo após ter recebido adiantamento de uma editora....foi um maltido no sentido literário, assim como Baudelaire, Rimbaud, Henry Miller, Jean Genet entre outros...teve como admirador ninguém menos que Charles Baudelaire considerado o maldito na República das Letras.
      Quando penso em Poe me recordo imediatamente de meu pintor preferido Soutine como tantos outros também carregou nas costas o peso de ter nascido no século errado!
      Edgar Allan poe (Boston, 19 de janeiro de 1809 — Baltimore, 7 de outubro de 1849)

4 comentários:

  1. Eu também adoro Poe, sobretudo os contos.
    O Corvo e clássico, mas interessante mesmo é o texto onde o próprio Poe disseca a construção do poema, contando como foi feito. No lugar do Corvo, quase foi usado um papagaio! Se não me engano, se chama "A filosofia da composição". É como se houvesse uma fórmula mágica pra escrever.
    Juro q li atentamente várias vezes, entendi o que ele quis dizer, mas na prática não funcionou comigo.
    Será que um dia consigo???

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  2. Conto, romance ou poema. Ele leva para seu mundo tudo que toca, inclusive quem o lê.

    Rafa, não te vi mais pela púque, apareça!

    ""Allan poe""

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  3. Vou aparecer por lá na quinta - feira...

    abraço

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- Chegue diante do quadro sem intenção preconcebida de sarcasmo.

- Olhe para a pintura do mesmo modo como olharia para uma pedra talhada. Aprecie as facetas, a originalidade da formam, a luta com a luz, a disposição da linha e das cores [...]

- Escolher um detalhe que seja a chave do conjunto, fixá-lo por um bom tempo, e o modelo surgirá.

- Nessa última comparação, deixar-se levar até as regiões da mais requintada Alusão.

Max Jacob


Que os vasos se comuniquem!

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