domingo, 18 de abril de 2010

Os Três Mal Amados

O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.
O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos...
O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas, meus raios-X. Comeu meus testes mentais, meus exames de urina.
O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações em verso. Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.
Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unhas, canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no banheiro, o aquecedor de água de fogo morto mas que parecia uma usina.
O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.
O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.
O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel.
O amor comeu meu Estado e minha cidade. Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés. Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas coisas de que eu desesperava por não saber falar delas em verso.
O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de minha mão asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.
O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte.

Texto: Os Três Mal Amados, de João Cabral de Melo Neto 
Imagem: Cena do filme Amor à flor da pele, de 2002. Direção:Wong Kar-wai

10 comentários:

  1. Esse filme é quente.
    __

    Corridinho

    Adélia Prado

    O amor quer abraçar e não pode.

    A multidão em volta,

    com seus olhos cediços,

    põe caco de vidro no muro

    para o amor desistir.

    O amor usa o correio,

    o correio trapaceia,

    a carta não chega,

    o amor fica sem saber se é ou não é.

    O amor pega o cavalo,

    desembarca do trem,

    chega na porta cansado

    de tanto caminhar a pé.

    Fala a palavra açucena,

    pede água, bebe café,

    dorme na sua presença,

    chupa bala de hortelã.

    Tudo manha, truque, engenho:

    é descuidar, o amor te pega,

    te come, te molha todo.

    Mas água o amor não é.

    ResponderExcluir
  2. Mas me deixou VIVA ainda!
    Texto perfeito, lindo, lindo,
    mil vezes LINDO!

    Seu blog também, ADOREI!

    Estou te seguindo desde
    hoje cedo. Beijos!

    ResponderExcluir
  3. Juan,

    não falemos.

    Ei... vamos tomar vinho?

    O SABOR!

    Amplexos vaso.

    Priscila Cáliga

    ResponderExcluir
  4. Nossa, e a indigestão?

    Bom, melhor a indigestão do que a inanição...

    ResponderExcluir
  5. "Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte."




    gosto muito desse poema na voz do Lirinha, do Cordel.

    o filme ainda não vi... na verdade nem conheço.
    Vou anotar o nome e acrescentar na minha listinha :)

    Abraços Juan.

    ResponderExcluir
  6. Coisas que o amor faz. Ele nos deixa famintos, de tudo, e ainda assim, nada adianta viver a falsa fartura da vida sem ele.

    Beijo-te com carinho.

    ResponderExcluir
  7. este blog é dos meus. suas influências literárias e musicais, também.

    abs

    ResponderExcluir
  8. Este poema tbm está presente em mim e no meu blog.
    Tudo a ver a ilustração com o filme!

    Abraço.

    ResponderExcluir
  9. "O amor comeu (...) minha identidade (...)".
    Isso!
    E eu não achei ruim, não.

    ResponderExcluir
  10. GOSTAVA DE TER VISTO ESSE FILME...PENA...DEVE SER MUITO INTERESSANTE

    BEIJO

    ResponderExcluir

- Chegue diante do quadro sem intenção preconcebida de sarcasmo.

- Olhe para a pintura do mesmo modo como olharia para uma pedra talhada. Aprecie as facetas, a originalidade da formam, a luta com a luz, a disposição da linha e das cores [...]

- Escolher um detalhe que seja a chave do conjunto, fixá-lo por um bom tempo, e o modelo surgirá.

- Nessa última comparação, deixar-se levar até as regiões da mais requintada Alusão.

Max Jacob


Que os vasos se comuniquem!

Related Posts with Thumbnails