Descobrisse ela que a amava com tal fúria, estava perdido. A salvação era fugir e, com a desculpa da mãe doente, afastou-se alguns dias da cidade.
- Há tanto tempo, joão!
- Pois é, mãe.
- Deixe-me vê-lo, meu filho. Você está um homem.
Encontrou o quarto arrumado, como no dia em que partira. havia quantos anos?...
Bebia sozinho nos bares, voltava de madrugada para casa.
- É você, meu filho?
- Durma bem, mãezinha.
Ganhar a paz na renúncia do amor. Ele, que era de gesto violento, não tinha coragem de arrancar a faca do coração? ah, quanta vergonha na partida, em que havia ido às duas da manhã, debaixo de chuva, espiar a janela fechada. Nem sequer chovia, ele que chorava. Não enxugava a lágrima quente no olho, fria no canto da boca.
Bem sabia por que dissera consigo quando o avião pousou: "Não se alegre, cara feia, você foi poupado para morte pior".
A mãe ali na porta:
- Meu filho, soube de uma coisa muito triste.
- Que é, mãe?
- Você gosta da mulher do outro. Verdade, João? São tristes os seus olhos.
- Iguais aos seus, mãe.
Bebia no gargalo, jogava paciência no quarto, lembrou-se de comprar escova de dente. Antes de vestir o paletó, enxergou a mosca sobre as cartas: "Há que matar essa bichinha". Depois de matá-la, poderia sair. Gentilmente a perseguiu: "mosca pelo nariz, a lágrima correu do olho", repetia com seus botões, "nariz da mosca é olho de lágrima" - e com o jornal dobrado esmagou a mosca.
"Era outra bichinha, nõa a mesma." Remoendo a dúvida, das dez da noite às duas da manha, ainda sem paletó, quando passou pelo sono. "Que foi que aconteceu" - Interrogava-se, as mãos na cabeça - "a que ponto me degredei?"
Chegara a sua vez, fora apanhado. Pensava na amada, olho perdido num objeto qualquer, deixava de vê-lo e o coração latia no peito. Não havia perigo: que é o ato gracioso de beijar uma boca, qual a lembrança de uma noite? Sou um homem, com experiência da vida. Depois, encurralado no velho sofá de veludo, sem fugir dos olhos acesos a cada fósforo - e nunca mais beijar o pequeno seio como quem bebe água na concha da mão.
Chovia, ela aninhava-se nos seus braços, a face trêmula das gotas da vidraça. Cada gesto uma descoberta: a maneira de erguer o rosto para o beijo e de sorrir, aplacada, depois do beijo. Estendida nua entre as flores desbotadas do sofá: Eu não gostei de outro... Mentia, bem que ela mentia! Doente de amor. Quero você. Venha por cima de mim. Nunca mais livre do teu peso.
- Tenho de voltar, mãe.
- Não disse que ficava uma semana?
- Pois é, mãezinha.
- Por causa do emprego, meu filho?
- Assunto urgente. Um amigo me chama.
Caso de vida ou morte. Não sei o que se passa comigo. Estou em aflição, tremo sem saber por quê.
A senhora me ajude, mãe. Um mau-olhado estragou minha vida. Estranho e misterioso, não sei o que é. Sem ânimo para nada. Não durmo...pouco falo. Quem sofre é a senhora. Sei que ficará preocupada, mas não deve. Que será isso, mãezinha? Desespero tão grande que tenho medo. Bem pode ser alguma mulher. Tantas passaram pela minha vida.
Texto: "Tantas Mulheres", em Desastres do amor de Dalton Trevisan
Imagem: Trabalho de Banksy
Desastres do amor é um título muito... preciso. Para um livro.
ResponderExcluirA narrativa prende até o fim.
ResponderExcluirAbraços,
Tânia
Queria entender esses labirintos que nos perdem, caminhos sem placas e espelhos sem aço...
ResponderExcluirQueria que um anjo, daqueles bons, pudesse se apiedar dos pobres desiludidos e um trevo de quatro folhas trouxesse pra mandar embora toda a dor de um coração partido.
beijo
Belo trecho.
ResponderExcluirDalton Trevisan, o Vampiro de Curitiba. Gosto.
Ele só tem que se entregar... simples assim... e sossegar a ansiedade da dúvida...
ResponderExcluirComo é fácil resolver a paixão alheia... rsrsrs
O Dalton era um mestre, e vc continua tendo a sensibilidade de escolher o melhor...
Beijos.
Curioso, um DT um tanto diferente. Não havia lido este texto.
ResponderExcluiré incrível como quando todas as mulheres caem em falência sempre emerge a guardiã da existência... a mãe.
ResponderExcluirum abraço, juan!
Trevisan é um dos meus preferidos.
ResponderExcluirGosto dos diálogos minimalistas, enxutos, que dizem tudo.
Sem dúvida, um dos grandes da literatura brasileira contemporânea.
Ótima escolha, caro Juan.
Aquele abraço.
"ganhar a paz na renúncia do amor..."
ResponderExcluirgosto tanto de Dalton T. q tenho uma coletânea dos contos dele.
nossa!!! boquiaberta!!!
ResponderExcluirJuan, caríssimo!
ResponderExcluirEspero que a volta preencha tua vida e emoções, com a intensidade que sempre te moveu!
Viva o eterno retorno!
Grato pela visita ao artebaiao.
Vim ler-te,
ResponderExcluirminha outra pele descansa
(Universo Íntimo),
esta sobrepele precisa
de tuas palavras,
sensibilidade aguçada a de Trevisan,
a mesma que a tua,
Belo texto!
ResponderExcluirObrigada pela visita ao Luz...
Abraço!